Um dos temas mais polêmicos
do país chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Foi protocolada na noite de
segunda-feira a primeira ação que pede a legalização ampla do aborto, para
qualquer gestação com até 12 semanas.
Atualmente, a interrupção da gravidez só é permitida no país em
três casos: se a mulher corre risco de morrer por causa da gestação; se a
fecundação ocorreu por estupro; se o feto é anencéfalo (sem cérebro) e,
portanto, não conseguirá sobreviver após o parto.A ação, à qual a BBC Brasil
teve acesso antecipadamente, foi movida pelo PSOL, com assessoria técnica do
instituto de bioética Anis. Não é possível prever quanto tempo levará para ser
julgada, talvez anos. Isso dependerá muito do ministro que for sorteado para
relatar a ação e de seu interesse em agilizar ou não o caso. É função do
Supremo, quando provocado por uma ação, analisar se leis vigentes no país estão
em desacordo com a Constituição Federal. Nesse caso, o partido solicita que a
Corte declare que os artigos do Código Penal (lei de 1940) que criminalizam o
aborto desrespeitam preceitos fundamentais, como o direito das mulheres à vida,
à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à
saúde e ao planejamento familiar, entre outros.As advogadas que assinam a ação
destacam que a criminalização do aborto leva muitas mulheres a recorrer a
práticas inseguras, provocando mortes. Argumentam também que o problema afeta
de forma ainda mais intensa mulheres pobres, negras e das periferias, já que
elas têm menos conhecimento e recursos para evitar a gravidez, assim como menos
meios para pagar por métodos abortivos mais seguros, ainda que clandestinos.
Movimentos contrários ao aborto, por sua vez, argumentam que o direito à vida
também deve ser garantido ao feto e, por isso, a prática seria
inconstitucional. Esses grupos hoje contam no Congresso com o apoio de uma
ampla bancada de parlamentares, em geral católicos e evangélicos, que atuam
para impedir a legalização do aborto ou mesmo aumentar sua restrição.
É desejo desses parlamentares aprovar uma emenda à Constituição
prevendo expressamente que o direito à vida está garantido desde a concepção.
"Muito provavelmente, mudando a nossa Constituição, passa-se
a ter uma nova interpretação dessas leis que já estão em vigor no nosso país (e
permitem algumas hipóteses de aborto)", disse no ano passado o deputado
Diego Garcia (PHS-PR), em um debate na Câmara.
Mesmo que isso seja aprovado, no entanto, caberá ao Supremo a
palavra final sobre se o eventual direito à vida do embrião se sobrepõe aos
direitos das mulheres, ressalta a antropóloga Debora Diniz, do instituto Anis.
Essa tensão é destacada pela presidente do STF, Carmén Lúcia, no
livro O Direito à Vida Digna , publicado em 2004, pouco antes de sua
entrada na Corte. Trechos da obra são citados pelo PSOL para fundamentar o
pedido de legalização.
"Quando se põe em debate o aborto, o que se oferece, num
primeiro lance de discussões, é se o embrião e o feto seriam pessoas, porque, a
se responder afirmativamente, eles titularizariam o primeiro de todos como é o
direito à vida digna, a qual, como antes lembrado, é intangível e inviolável.
Mas não se há de ignorar que a vida é o direito que se exerce com o outro, no espaço
das relações entre sujeitos, não se podendo anular, portando, a condição de
pessoa-mulher que, em sua dignidade, é livre para exercer a escolha da
maternidade ou não", escreveu a ministra no livro.
O que esperar do
Supremo?
Na
última década, o Supremo tomou decisões que podem indicar uma abertura da Corte
para o debate do aborto. Não está claro, porém, se há maioria para aprovar uma
legalização ampla da prática.
Na
decisão mais recente, há três meses, a primeira turma do STF, formada por cinco
dos onze ministros, decidiu colocar em liberdade duas pessoas que haviam sido
presas em flagrante supostamente realizando aborto em uma clínica clandestina.
Os
magistrados poderiam ter se limitado a revogar a prisão preventiva, sob
argumento de que os acusados podem responder ao processo em liberdade. Foi o
entendimento de Marco Aurélio e Luiz Fux.
Três ministros, no entanto, foram além. Acompanhando o
surpreendente voto de Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber decidiram
que a prisão não deveria ser mantida também porque a criminalização do aborto
até o primeiro trimestre de gestação é incompatível com direitos fundamentais
das mulheres, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à
integridade física e psíquica, além de ferir o princípio da igualdade. O corte
do primeiro trimestre, equivalente a doze semanas, foi proposto por Barroso
porque é adotado na maioria dos países que permitem o aborto, como quase todos
os países da União Europeia, Rússia, Suíça, Moçambique e Uruguai, entre outros.
"Durante esse período, o córtex cerebral - que permite que o
feto desenvolva sentimentos e racionalidade - ainda não foi formado, nem há
qualquer potencialidade de vida fora do útero materno", escreveu o
ministro.
Barroso defendeu ainda em seu voto que o Estado e a sociedade
devem buscar evitar o aborto por outros métodos que não a criminalização, como
"oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo
à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas".
A decisão causou imediata reação no Congresso: "Revogar o
Código Penal, como foi feito, trata-se de um grande atentado ao Estado de
direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um
inocente", disse na ocasião o deputado Evandro Gussi (PV/SP).